Saturday, July 04, 2009

O caminho para Cusco - A Saga

Ao chegarmos em Puno, pela manhã, descobrimos que a estrada para Cusco estava bloqueada por manifestações de greve dos povoados. A única forma de se chegar era através de uma estrada alternativa que levava 7 horas a mais do que o normal (em torno de 14 horas de viagem). O único vôo estava lotado.
Era dia 16 e tínhamos que estar em Cusco no dia 18, dia em que daríamos início à Trilha Inca.
Topamos pegar o ônibus alternativo (que não era leito, e sim normal), uma vez que era nossa única opção de chegar à tempo.
Partimos as 8 da noite do dia 16 de Puno.
Leandro e Ivan - nosso amigo espanhol, agregado à nossa viagem em Ica - já estavam sem conseguir dormir desde a noite anterior, também dentro de um ônibus. Seria uma segunda noite chacoalhando sob o frio.
E assim foi. As 7 horas da manhã nos despertamos oficialmente (porque foi difícil conseguirmos dormir por longos períodos durante a madrugada) e descobrimos que o ônibus estava há 2 horas atrasado. Ou seja, seriam 16 horas.
Ok... paciência e vamos seguir viagem.
As 9 da manhã o ônibus pára e se encontra impossibilitado de prosseguir.
Estávamos no meio de um povoado que não fazíamos idéia do nome e mesmo perguntando depois por várias vezes, era difícil entender. Haviam cerca de 15 ônibus e caminhões na nossa frente. Todos igualmente parados.
O povoado estava fechado devido às manifestações da população. Eles alegavam coisas realmente importantes: Semanas atrás, centenas de índios desapareceram nas florestas amazônicas peruanas. Eles foram dizimados por políciais, pois protestavam contra a privatização das áreas que ocupavam. E naquela semana, o governo do Peru estava prestes a fechar um acordo com uma empresa que construiria, naquela região, uma hidrelétrica privatizada. Uma hidrelétrica! Num lugar onde a água existente para aquela população já era escassa! Eles teriam que passar a comprar água por um preço muito mais elevado do que já tinham acesso. E talvez, teriam que se mudar dali, por não terem condições nem de comprar a própria água.
E aquela era a saída que eles encontraram. A atitude que chamaria a atenção do governo de forma mais rápida: Atingindo o turismo e, consequentemente conseguindo mídia espontânea. E, segundo eles: "Cada turista que tomasse suas devidas providências se quisessem passar, pois as empresas sabiam do fechamento das estradas".
Não tem nem como se revoltar com a situação! Aquele povo estava exercendo o próprio direito. O direito de se manifestar. "O povo unido jamais será vencido"! Nós estávamos ali naquele momento e isso era um problema nosso.
Uma coisa que me chamou atenção foi pensar que o Brasil, um país muito maior do que o Peru, com problemas políticos de dimensões muito maiores e piores, não se mobiliza. Não se une para criar suas próprias manifestações. Nessa hora eu tive vergonha de ser brasileira. Podíamos ser um povo com voz. Unidos a favor de um senso comum - que deveria ser manifestações quanto às falcatruas sem fim que vemos ser reveladas todos os meses no nosso poder político. Manifestações quanto às enganações que nos fazem passar. Devíamos nos revoltar pelo que estão fazendo com a nossa Amazônia! Com a CPMF que vira o IOF do cheque especial... e por aí vai!

E isso me faz pensar que talvez toda a história do regime da repressão política da época de 64 parece permear um certo inconsciente coletivo. Parece ser um grande ponto de recalque do brasileiro, de forma que retorna e retorna e retorna. A repressão foi tanta e, inclusive resgatada (de certa forma) no âmbito do real pelo nosso governo atual, que a consequência foi nos tornarmos individualistas. Todos nós passamos a nos exilar dentro de nossos próprios mundos e dentro do nosso próprio país. É muito mais fácil viver o dia-a-dia rotineiro do que perder tempo se preocupando com as questões políticas que não trazem esperanças de mudança. Mas onde está a mudança? Precisamos esperar que o outro é que tome atitudes? Ou será que a mudança está em nós mesmos?
O que eu vi no meio do nada nessa estrada de Puno para Cusco foi que a mudança depende de cada um de nós. De que qualquer atitude de manifestação é válida. Mesmo que seja um tanto quanto extrema, pois foi uma forma encontrada de conseguir chamar a atenção das autoridades.
São Paulo, Rio de Janeiro, são capitais "exemplo" para o país. Até mais do que Brasília. E se as capitais mais importantes economicamente não fazem nada, porque e como as outras vão fazer? Não dá mais para pensarmos assim. Não dá mais para esperarmos a ação do outro. A mudança só depende de nós.

Bem, voltando à saga peruana...
Após 3 horas de espera para entender se algo iria acontecer, percebemos que não tínhamos outra saída senão a de começar a caminhar rumo à Cusco. Estávamos naquele ponto, a 70 km da cidade. Quase que um dia inteiro andando.

A única certeza é que não poderíamos voltar para Puno. Se isso acontecesse, nunca estaríamos no dia seguinte em Cusco para conseguir dar início à nossa trilha Inca. Eu só tinha em mente que precisava seguir em frente.
Nos juntamos num grupo de 5 pessoas: Eu, Leandro, Ivan, Grace e Edward (dois londrinos que estavam no ônibus, turistas como nós) e começamos nossa caminhada. Segundo nos informaram, só tínhamos de andar até o próximo povoado, pois lá teriam táxis que nos levariam a Cusco. Eram duas horas caminhando até este ponto.
15 minutos depois que saímos, conseguimos uma comprar uma carona num carro que já tinham 5 pessoas. Jogamos as malas no porta malas e nos amassamos para cabermos todos. No decorrer do caminho vimos muitos grupos de turistas caminhando também.

Chegamos ao segundo povoado e fomos deixados no início da cidadela. Tínhamos que atravessá-la por inteiro para que pudéssemos ir em busca de condução. Mas antes, os cinco foram intimados a dançar salsa peruana, com uma mulher (que estava no carro conosco) que se intitulava artista. Seu nome era Marisol e ela estava fazendo um video-clipe onde pretendia ter a participação de estrangeiros (mesmo que estivessem com mochila nas costas) dançando com ela, enquanto ela cantava seu mais recente sucesso: Me Enamorei por Ti. A cena foi hilária. Nós, no meio do nada, sem imaginar o nome do lugar que estávamos, sem água suficiente, sem comida, sol à pino da 1 hora da tarde e convidados a fazer parte do video-clipe da Marisol.
Dançamos ao som da salsa-brega-peruana que saia de um aparelho de CD movido à pilhas!

Atravessamos a cidadela e, para a nossa surpresa, não haviam carros. Havia mais um povoado em greve e fechado. E mais uma promessa de que no próximo povoado conseguiríamos carro para Cusco. Para a nossa sorte, havia um caminhão parado no bloqueio que transportava frutas e as estava vendendo. Foi nossa única refeição, além de um pacote de club social que eu carregava na mochila e que dividi entre os 5.

Seguimos andando e dessa vez não tivemos a mesma sorte de encontrar um coche. Dessa vez, surgiu uma tiazinha que dirigia uma bike com um grande suporte na frente para carregar coisas. Nós a convencemos a carregar todas as nossas malas e assim foi. Uma coisa é andar com mochilões e bolsas. Outra coisa é andar livremente. E eu nunca dei tanto valor a poder andar livremente.
Andamos cerca de 2 horas e meia sem trégua do sol.
Pegamos uma estrada de pedras para que a tiazinha pudesse nos deixar o mais próximo possível do vilarejo, uma vez que não podia ser vista nos ajudando.

Ao chegarmos neste lugar, novamente descobrimos que não havia carro! Que havia mais um povoado bloqueado e que se quiséssemos haviam moto-táxis para nos levar ao vilarejo seguinte, pois lá era um lugar que...
Bom, a essa altura do campeonato, já estávamos imaginando que andaríamos até Cusco. Desistimos de criar expectativas. Por um longo caminho tivemos que caminhar novamente, porque o moto-táxi disse que nos pegaria mais pra frente, mas não apareceu. Foi nos pegar após 40 minutos que já estávamos caminhando. E como era uma moto, a única opção era ir um de cada vez. E assim foi. o motoqueiro nos deixou um a um a aproximadamente 1km do último vilarejo.

Para a nossa surpresa, existiam ônibus saindo dali em direção a Cusco! O ônibus levava cerca de 2 horas. E, para nossa sorte o ônibus estava de partida quando nós chegamos. O lado ruim é que não tínhamos mais assentos disponíveis para todos e tivemos que nos revezar para sentar.

Naquele momento me peguei rindo, lembrando o quanto estávamos achando ruim as 14 horas iniciais dentro do ônibus que saiu de Puno e que não era leito. Era uma tragi-comédia. Antes eu estivesse nele.

Chegamos em Cusco por volta das 18:00 do dia 17. Quase 24 horas de viagem.

Após tomar um banho no albergue, saimos para jantar com os nossos 3 amigos de perrengue. Pessoas que se conheceram em um momento extremo mútuo e que vivenciaram juntas a experiência de um trabalho em grupo, que vai direto para o currículo da vida.

E nesse ponto a questão do limite foi muito repensada por mim. Quando achamos que conhecemos os nossos limites, nos surpreendemos. Durante um dia inteiro eu não senti sede, não senti fome e nem sequer precisei ir ao banheiro. Reconheci a importância de uma alimentação saudável e um corpo bem hidratado, que torna-se preparado para um momento extremo como esse. E eu me senti assim: preparada. Os limites do ser humano são realmente discutíveis. Aliás, até que ponto eles existem? Se existem, os meus se tornaram irreconhecíveis pra mim e eu já não coloco minha mão no fogo por eles.

Outra questão forte foi a idéia de ter um foco, uma meta. A minha meta era conseguir começar a trilha no dia 18. Meu sonho tão esperado. E que não poderia deixar que se fosse devido ao sonho de outras pessoas. O sonho de serem ouvidos e de fazer valer seus direitos.
Todos estavam ali em busca de seus sonhos, em busca de realizar seus desejos.
Isso me fez seguir em frente. Isso me fez não racionalizar.

O que é outra questão. A questão da racionalização. Busquei a minha meta através de atitudes tomadas com o meu coração. Se eu tivesse racionalizado, teria dado espaço ao medo de se jogar num caminho desconhecido. Assim como outras pessoas estavam pensando - com medo. Teria continuado dentro daquele ônibus sem perspectivas de continuar meu caminho. Mas não. Eu continuei. E a única certeza que eu ouvia meu coração dizer era que: não, eu não iria andar até Cusco. Algo iria acontecer. Ajudas iriam aparecer! E assim foi! De fato, a fé move montanhas. E não estou falando aqui de uma fé puramente religiosa. Mas, uma fé em si mesmo, nos caminho que o coração aponta. E que uma vez que eu estivesse traçando o caminho que eu de fato deveria seguir, o cosmos se ocuparia do resto.

E assim foi. Assim é. Assim chegamos em Cusco.

1 comment:

Pa said...

Lindo, Tha!
O maior e melhor insight que tive na vida partiu de um conselho super manjado e que passava despercebido: escutar o coração. Significa pra mim que as respostas a gente já tem, basta reconhece-las. E não é racionalizando que a gente as reconhece não.
Adorei a aventura, quero ler sempre mais aqui.
Beijo